A proposta desagrada a ambientalistas e defensores dos indígenas. De acordo com eles, a aprovação do PL poderia mudar o curso de pelo menos 303 pedidos em andamento, ou seja, que estão em alguma fase do processo de demarcação, sem que este tenha sido concluído. Essas terras somam 11 milhões de hectares (equivalente a 1,30% do território brasileiro), onde vivem cerca de 197 mil indígenas (0,20% da população do País).
Lembrou o site de notícias do Estadão, em 30.5.23, que, de acordo com monitoramento do Instituto Socioambiental (ISA) com base em publicações feitas no Diário Oficial da União, o Brasil tem 421 terras indígenas devidamente homologadas, que somam 106,6 milhões de hectares e onde vivem cerca de 466 mil indígenas.
O indigenato é tradicional instituição jurídica que deita raízes nos velhos tempos da Colônia quando o Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, às terras outorgadas a particulares seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.
Terras tradicionalmente ocupadas não revelam uma relação temporal. Se formos ao Alvará de 1º de abril de 1680 que reconhecia aos índios as terras onde estão tal qual as terras que ocupavam no sertão, ver-se-á que a expressão ocupadas tradicionalmente não significa ocupação imemorial. Não se trata de posse ou de prescrição imemorial. Não quer dizer terras imemorialmente ocupadas, ou seja, terras que eles estariam ocupando desde épocas remotas que já se perderam na memória. Como bem alertou José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5º edição, pág. 716), o tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terra e ao modo tradicional de produção, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra.
O indigenato não se confunde com a ocupação, portanto, com a posse civil. O indigenato é fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. Essa a lição obtida de João Mendes Júnior é observada por José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, RT, 5ª edição, pág. 717). Esse desenvolvimento é feito sobre a tese de que as terras de índios, congenitamente apropriadas, não podem ser consideradas nem como res de ninguém, nem como res derelictae. Não é uma simples posse, mas um reconhecido direito originário e preliminarmente destinado ao indígena.
Sabe-se que o artigo 231 da Constituição Federal reconhece o direito ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras que tradicionalmente ocupam. Tal usufruto é intransferível como lembra Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969, t.IV/456 e 457).
Não está em jogo, no tema da posse indígena, como revelou o Ministro Victor Nunes Leal (voto proferido nos autos do recurso extraordinário nº 44.585 – MT, julgado a 28.6.61), um conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista dos vocábulos. Trata-se de um habitat de um povo. Assim, a Constituição Federal determina que num verdadeiro parque indígena, com todas as suas características naturais primitivas, possam permanecer os índios vivendo naquele território.
A posse indígena distingue-se da posse civil. Aquela é mais ampla, mais flexível como conceituado no artigo 23 da Lei nº 6001, de 19 de dezembro de 1973 ( Estatuto do Índio).
Nas terras indígenas, a propriedade é da União ( Constituição Federal, artigo 20, inciso XI). Dos índios é o usufruto exclusivo abrangendo o aproveitamento das riquezas do solo, dos rios e lagos neles existentes. Tais terras são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
José Afonso da Silva, em parecer, coloca que um suposto marco temporal só teria legitimidade se colocado em 1611, data da Carta Régia de Felipe III e reconhecimento jurídico inequívoco dos direitos originários indígenas, mas reitera que não há na Constituição Federal sinalização alguma de data a partir da qual se fariam valer os direitos territoriais das populações indígenas.
Há os que entendem que o direito dos indígenas é anterior à existência do Estado brasileiro, que apenas deve reconhecer suas posses.
Explica melhor José Afonso da Silva (Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. In: SANTILI, Juliana (Coord.). Os direitos indígenas e a constituição. Porto Alegre: Fabris, 1993. p. 50):
“Quando a Constituição declara que as terras indígenas ocupadas pelos índios se destinam a sua ‘posse permanente’, isso não significa um pressuposto do passado, como ocupação efetiva, mas especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat. Se ‘se destinam (destinar’ significa apontar para o futuro) à posse permanente é porque um direito sobre elas preexiste à posse mesma, e é o direito originário já mencionado. “
Mas há o óbice do marco temporal diante da Constituição de 1988.
Advieram decisões proferidas por turma do STF que já trouxeram interpretações levadas a efeito com base no marco temporal, v.g., ARE 803462 e RMS 29087 – objeto de recursos do MPF.
Destaco o ARE 803462:
EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TERRA INDÍGENA “LIMÃO VERDE”. ÁREA TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS (ART. 231, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MARCO TEMPORAL. PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO CUMPRIMENTO. RENITENTE ESBULHO PERPETRADO POR NÃO ÍNDIOS: NÃO CONFIGURAÇÃO.O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet 3.388, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1º/7/2010, estabeleceu como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena, a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
Conforme entendimento consubstanciado na Súmula 650/STF, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado remoto. Precedente: RMS 29.087, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014.
Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada.
Agravo regimental a que se dá provimento.
Tem-se, por sua vez, o RMS 29.087/DF:
DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. O MARCO REFERENCIAL DA OCUPAÇÃO É A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DAS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS. PRECEDENTES. 1. A configuração de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 650, que dispõe: os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto. 2. A data da promulgação da Constituição Federal (5.10.1988) é referencial insubstituível do marco temporal para verificação da existência da comunidade indígena, bem como da efetiva e formal ocupação fundiária pelos índios ( RE 219.983, DJ 17.9.1999; Pet. 3.388, DJe 24.9.2009). 3. Processo demarcatório de terras indígenas deve observar as salvaguardas institucionais definidas pelo Supremo Tribunal Federal na Pet 3.388 (Raposa Serra do Sol). 4. No caso, laudo da FUNAI indica que, há mais de setenta anos, não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena na área contestada. Na hipótese de a União entender ser conveniente a desapropriação das terras em questão, deverá seguir procedimento específico, com o pagamento de justa e prévia indenização ao seu legítimo proprietário. 5. Recurso ordinário provido para conceder a segurança.
O “marco temporal da ocupação” é um argumento do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, que surgiu em 2009, ao lado das 19 “condicionantes” trazidas pelo também ex-ministro do STF Menezes, Direito no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Esse argumento é hoje utilizado pelos ruralistas para limitar as demarcações de terras indígenas.
Diz esse argumento que os direitos territoriais dos povos indígenas só têm validade se eles estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988. Queria o ministro Ayres Britto colocar uma “pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação da área indígena”.
A Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu um parecer que o presidente Michel Temer logo aprovou, e que foi objeto de publicação. Trata-se de ressuscitar, pela terceira vez, a portaria 303 de 2012 da AGU, tão controvertida que por duas vezes teve de ser suspensa. O parecer obriga toda a administração pública federal a cumprir as “condicionantes” que constaram do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a célebre demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em 2009.
Para fundamentá-lo, a AGU atribuiu ao STF o propósito de, naquele julgamento, ter tido a “deliberada intenção” de definir a interpretação dos artigos da Constituição Federal que tratam da demarcação das terras indígenas.
Dessa forma, tal entendimento deveria ser aplicado “para todo e qualquer processo de demarcação de terras indígenas no Brasil”.
Aponta um relatório do Núcleo de Justiça Racial da FGV (Fundação Getulio Vargas) Direito SP que “o marco temporal para terras indígenas não tem base na Constituição, cria insegurança jurídica para o Brasil e não vai resolver conflitos no campo. Pelo contrário, deve incentivar grilagem, prejudicar a segurança fundiária e econômica em territórios como a Amazônia e incentivar a violência.”
Para José Afonso da Silva e Manuela Carneiro da Cunha (STF poderá sustar o “marco temporal”?, in Folha de São Paulo, 13 de agosto de 2017), “isso é um engano: em várias ocasiões, ministros do Supremo que haviam participado do julgamento de 2009 afirmaram que as condicionantes da terra indígena de Raposa Serra do Sol eram específicas daquele caso e não vinculantes.
O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, criou uma argumentação própria – e peculiar – para se opor aos direitos pela posse imemorial garantidos pela Constituição aos povos indígenas. Ela ficou conhecida como a “tese de Copacabana”.
Em outubro de 2014, ao discordar do relator Ricardo Lewandowski, favorável a manter a demarcação da Terra Indígena Guyraroká, Mendes apelou para uma ironia. Ele disse que se a política de demarcação da Fundação Nacional do Índio (Funai) prosperar “podemos resgatar esses apartamentos de Copacabana, sem dúvida nenhuma, porque certamente, em algum momento, vai ter-se a posse indígena”.
O STF está a se debruçar sobre o tema, que envolve uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng. Eles requerem a demarcação da terra indígena Ibirama-Laklanõ, onde também vivem indígenas das etnias Guarani e Kaingang.
A matéria está em no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 pelo STF.
O julgamento do marco temporal começou em agosto de 2021, mas foi interrompido por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. O placar está em 1 a 1.
O relator da ação é o ministro Edson Fachin, que se posicionou contra a tese do marco temporal. Em seu voto, o ministro afirmou que “a data da promulgação da Constituição de 1988 não constitui marco temporal para a aferição dos direitos possessórios indígenas”.
Entendeu o ministro relator Edson Fachin em seu voto, que direitos fundamentais não são passíveis de retrocesso”,
Já o ministro Kassio Nunes Marques divergiu do relator e se manifestou pela aplicação do marco. Segundo ele, reconhecer pedidos de posse posteriores à data de promulgação da Constituição “implicaria o direito de expandi-las ilimitadamente para novas áreas já definitivamente incorporadas ao mercado imobiliário”.
O ministro Nunes Marques votou pelo desprovimento do RE 1017365, pois considera não ter sido comprovada a ocupação tradicional em 5/10/1988. Também entende que a ampliação seria indevida, por se sobrepor a uma área de proteção ambiental e por não ter sido homologada pelo presidente da República. Além disso, a falta de intimação das famílias de agricultores afetadas para que se defendessem viola o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, como se observa do noticiário do STF, em 15.9.21.
Ao apresentar sua divergência, o ministro Nunes Marques afirmou que a decisão do STF no julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol ( Petição 3388), em que foi adotado o marco temporal, é a solução que melhor concilia os interesses do país e os dos indígenas. Segundo ele, esse parâmetro tem sido utilizado em diversos casos, e a revisão da jurisprudência ocasionaria insegurança jurídica e retorno à situação de conflito fundiário.
Na avaliação do ministro Nunes Marques, a Constituição de 1988 reconheceu aos indígenas, entre outros pontos, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas essa proteção constitucional depende do marco temporal. Segundo ele, a posse tradicional não deve ser confundida com posse imemorial, sendo necessária a comprovação de que a área estava ocupada na data da promulgação da Constituição ou que tenha sido objeto de esbulho, ou seja, que os indígenas tenham sido expulsos em decorrência de conflito pela posse.
O recurso tem repercussão geral reconhecida (Tema 1.031) e servirá de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 82 casos semelhantes que estão sobrestados.
A Casa aprovou regime de urgência para a tramitação do projeto, em uma tentativa de se antecipar à pauta do Supremo Tribunal Federal ( STF), que prevê avaliar a constitucionalidade de uma data limite como “trava” para a demarcação de terras indígenas em julgamento no dia 7 de junho.
A matéria do marco temporal é objeto de discussão no PL 490/2007.
O PL 490/2007 cita votos no julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) no STF, que fala em um fato indígena —a ocupação em outubro de 1988. A tese é rejeitada pelos críticos, que apontam assassinatos e deslocamentos de populações indígenas em décadas anteriores.
A Câmara dos Deputados aprovou no dia 30 de maio do corrente ano o projeto de lei sobre o marco temporal da ocupação de terras por povos indígenas (PL 490/07). A proposta será enviada ao Senado, consoante informou a Agência Câmara de Notícias.
Ainda como informado por aquela Agência de Notícia, a MP foi aprovada na forma de um substitutivo do relator, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA). Segundo o texto, para serem consideradas terras ocupadas tradicionalmente, deverá ser comprovado objetivamente que elas, na data de promulgação da Constituição, eram ao mesmo tempo habitadas em caráter permanente, usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural.
Dessa forma, se a comunidade indígena não ocupava determinado território antes desse marco temporal, independentemente da causa, a terra não poderá ser reconhecida como tradicionalmente ocupada.
O substitutivo prevê ainda:
permissão para plantar cultivares transgênicos em terras exploradas pelos povos indígenas;
proibição de ampliar terras indígenas já demarcadas;
adequação dos processos administrativos de demarcação ainda não concluídos às novas regras; e nulidade da demarcação que não atenda a essas regras.
O substitutivo do deputado Maia estabelece que o usufruto das terras pelos povos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional, permitindo a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Fundação Nacional do Índio (Funai). Tratar-se-ia de matéria de interesse público voltada para a segurança nacional.
*É procurador da república aposentado com atuação no RN.