Quando comandava o combate à Covid-19 no país, Luiz Henrique Mandetta
trabalhava com três projeções. A mais pessimista era de 180 mil mortes,
e a mais otimista, de 30 mil. Um número tido atingível era de 80 mil
mortes.
Foto: O Globo
O ex-ministro diz agora temer que o Brasil, hoje com 139 mil óbitos, concretize o pior cenário. “Até o surgimento da vacina é capaz de chegarmos aos 180 mil”, disse ao GLOBO. Mandetta lança o livro de memórias “Um paciente chamado Brasil”(Ed. Objetiva), em que conta bastidores do combate à pandemia e do processo de fritura pelo qual passou no cargo por insistir em pregar distanciamento social contra o vírus e se recusar a liberar a cloroquina sem evidência de eficácia.
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Falando por videoconferência de Campo Grande (MS), onde mora, o médico comentou os rumos da luta contra a pandemia.
Como o senhor avalia a situação epidêmica do país e a indefinição na reabertura?
Estamos enfrentando a pandemia sem liderança. Não tem uma voz que dê os critérios técnicos. Como não temos guidelines, há personagens: um manda abrir, outro manda fechar...
Agora, aglomerou? Duas semanas depois você tem aumento de casos. Foi assim no feriadão de São Paulo duas semanas atrás. São Paulo já aumentou o número de casos. Todo mundo desceu para a praia, (houve um) aumento de 40% no fluxo de pessoas para o litoral. Aglomerou? Colhe o preço.
Só é possível voltar às escolas com vacina?
É sempre fácil você fechar. Difícil é ter os critérios para reabrir. Mas você manter as crianças fora da sala de aula aguardando por uma vacina é outro erro. A vacina é uma possibilidade, não é uma realidade. Ela pode acontecer durante o ano de 2021, mas também pode falhar.
A minha impressão é que a gente deveria começar por segmento, por projeto piloto, medindo não só o estudante, a criança, mas o núcleo familiar e o magistério, porque ele está junto. Isso teria que nascer de um conjunto de especialistas para fazer uma norma técnica abrangente para que cada cidade fosse se encaixando.
O que a gente está vendo é um festival. Tanto o Ministério da Educação quanto o Ministério da Saúde não saem com uma norma técnica que sirva de baliza nacional.
O Brasil já tem quase 140 mil mortos por coronavírus. Quantas dessas mortes poderiam ter sido evitadas por ações do governo federal?
Não gosto muito de me pautar por números, senão vira exercício de adivinhação. Mas tínhamos lá claramente alguns cenários.
Se fôssemos extremamente duros, radical, nível Nova Zelândia, teríamos 30 mil mortes. Se tivéssemos nossas ferramentas de enfrentamento, luta, restrição, conscientização, educação em saúde e participação suprapartidária de todo mundo contra um inimigo em comum, seriam 80 mil.
Se fizéssemos um caminho de não fazer nada, e deixar a onda explodir, é um número muito elevado. E estamos aí em 140 mil mortes (atualmente). Acho que até o surgimento da vacina é capaz de chegarmos aos 180 mil, que falamos no livro. Era contra os 180 mil que tínhamos que brigar, tínhamos que lutar para dar menos do que isso.
O senhor diz no livro ter ficado espantado com o presidente negligenciar a ciência médica para promover a cloroquina e atacar o distanciamento social. Ele já não mostrava uma postura anticiência na campanha?
Olha, eu já vi parlamentares de esquerda falando que eram favoráveis ao fim da propriedade privada, ao confisco de bens, e depois chega no governo, vê que há uma responsabilidade maior. A própria história do PT vai muito nesse sentido.
Exemplos são vários entre a verborragia daquele momento (da campanha) e depois os fatos, a vida como ela é. Isso não me causou muito espanto. O que me causou mais impressão nessa história é que você tem que decidir em alguns momentos sobre questões econômicas, geopolíticas, sociais, mas tem momentos que você está decidindo sobre vida e morte. Você não está decidindo sobre fazer uma política mais liberal ou menos. Você tem na sua frente o maior patrimônio de uma nação, que deveria ser a vida.
Quando você se depara com isso, nega e fala “não, vou aglomerar”? Isso é impactante. Isso é fato, fático. Acho que tem um espaço de acomodação para todos os governos. Agora, com vidas, isso realmente para mim foi impactante.
Em seu livro, o senhor sugere que o presidente teria colocado agentes da inteligência para monitorá-lo e constrangê-lo enquanto ainda era ministro. Isso ficou confirmado?
Eu estava com minha esposa no apartamento domingo e tinha saído para uma caminhada ali do lado, comprar chá e pão doce na padaria, a duas quadras de onde eu morava. Depois, na quinta-feira, achei estranho quando o presidente veio me dizer “hoje eu vou comer sonho na padaria”. E ele foi lá naquela padaria, que é diametralmente longe do Palácio do Planalto, comeu no balcão, criou aglomeração.
Eu pensei, será que que ele veio até aqui para depois eu reclamar em público que ele aglomerou gente mais uma vez? Aí ele poderia dizer “mas você também veio aqui, conforme esta foto”.
Eu me questionei: será que eles estão me monitorando, sabendo onde vou, onde deixo de ir? Eu nunca confirmei ou desconfirmei aquilo, mas era uma coisa estranha.
O senhor apoiou Bolsonaro no primeiro turno e colaborou com a campanha. Revisitaria essa opção hoje?
Se eu me arrependo? Naquele momento eu não gostava também do caminho do PSDB. Eu já tinha também dado um certo desencanto. O caminho do PT não dava.
Não me envolvi muito diretamente na campanha. Ela aconteceu e, no momento de ficar entre o PT e a ruptura, eu optei pela ruptura.
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Eu não gostaria de chegar em 2022 e encontrar de novo essa teoria que está sendo cultivada: o pessoal do Bolsonaro diz “vote em mim senão o PT volta”, e o PT diz “vote em mim senão o Bolsonaro fica”.
Se você está de um lado você é taxado disso ou daquilo. Ou você é hétero ou você é gay. Ou você é preto ou você é branco. Ou você gosta de cloroquina ou não gosta. Ou você faz isso ou aquilo... É maniqueísta isso. Não existe espaço nem para você falar “espera aí, quero analisar, debater”?
O senhor revela que o ministro da Cidadania Onyx Lorenzoni (DEM, mesmo partido de Mandetta), quando deputado, gravou colegas para tentar comprometê-los, e o senhor ajudou a abafar a crise...
Escrevi sobre isso para vocês saberem como é Brasília, um ambiente onde você tem que estar ligado o tempo todo.
Já ministro, Onyx depois apareceu em outra gravação, com o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), vazada, conspirando contra o senhor. Sentiu-se usado por Onyx?
Naquele primeiro episódio, não sei. Nesse segundo, com ele e o Osmar Terra, acho que de alguma maneira. O Osmar na semana anterior tinha criticado o ministério, colocando-se a favor de da tese de que só iria ter 3.000 mortes. Foi falar isso na rádio. Era quase como se o Onyx estivesse plantando uma informação, dizendo “eu tenho uma alternativa. Tenho um cara que tem trânsito político, já foi ministro e precisa voltar”.
O senhor vai se candidatar a algum cargo público em 2022?
A única coisa que eu sei é que deputado federal eu não vou mais disputar. Já tive dois mandatos e não tenho mais pretensão. Nós estamos no meio de um governo, não chegou nem na metade. Nunca fiz plano em política, de dizer que vou me candidatar a isso ou aquilo. Sempre fui muito de impulso. Se meu coração está me mandando fazer uma coisa, eu vou.
O senhor se envolveu em algum projeto agora? Vai retomar a prática médica?
Trabalho com recuperação de movimento de crianças. Sou ortopedista pediátrico e adoro isso. Já estou retomando consulta. Com certeza em 2021 vou fazer isso. Mas impuseram agora pela primeira vez na História uma quarentena de trabalho de 180 dias para um ex-ministro da Saúde. Até 16 de outubro não posso fazer nada. Não posso ter vínculo.
*Globo
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